Conheça um pouco mais sobre 4 releituras brasileiras do clássico conto infantil

Por Carol Barreto

A história das narrativas populares que vieram a se tornar, o que hoje conhecemos, como contos de fadas é complexa e intrigante. Ao longo dos séculos, relatos folclóricos, mitos, adágios e lendas populares foram sendo transmitidos oralmente de geração a geração, sofrendo sensíveis modificações, e foram transpostos para a linguagem escrita há pouco mais de três séculos, constituindo o que hoje consideramos a literatura infantil “clássica”.

É o caso de Chapeuzinho Vermelho. Revisitado incansavelmente pela literatura, teatro, cinema, música; nas versões originais, transmitidas oralmente por camponeses medievais, havia vários elementos grotescos, sombrios, sensuais e até mesmo obscenos que acabaram sendo retirados por narradores posteriores. A primeira menção documental que se tem notícia do clássico conto infantil remonta ao século XI, a uma obra chamada Fecunda Ratis, escrita em latim, e que conta a história de uma menina de capuz vermelho em convergência com a presença de lobos.

Mas a primeira versão escrita que, de fato, chegou aos nossos tempos é a do francês Charles Perrault, de 1697. Na narrativa recontada por Perrault, uma bela menina – “a mais linda que se podia imaginar” – tinha um chapéu vermelho que lhe caía tão bem que todos a chamavam de Chapeuzinho Vermelho. Certa vez, foi visitar sua avó que estava doente, levando um bolo e um pote de manteiga. No caminho, encontra um lobo, que lhe pergunta aonde vai e o que leva. A “pobre criança” conta todos os detalhes, e o lobo se apressa para chegar logo à casa da avó enquanto Chapeuzinho se distrai colhendo flores. O animal finge ser a neta da senhora, invade a casa e a engole. Finalmente, a menina chega e transcorre o já conhecido diálogo que se finaliza com a menina despindo-se, deitando-se na cama e sendo “devorada” pelo lobo. Diferentemente da versão mais difundida, essa não tem um final feliz. O conto termina com um pequeno poema de 15 versos que constitui a moral da história, que censura as crianças – especialmente as belas meninas – a falar com qualquer pessoa estranha, terminando por dizer que os “lobos” sedutores são, de todos, os mais perigosos. A intenção da história de alertar as meninas contra a sedução amorosa fica bem clara na leitura da moral, que resume o conto.

Pouco mais de um século depois, os irmãos Grimm, já intencionados em transformar aqueles contos populares mais acessíveis ao entendimento e divertimento infantil, propõem uma versão com um final mais atenuado. Nenhuma diferença significativa pode ser notada até o momento em que se dá o diálogo entre o lobo e a menina. Mas, nessa versão, a menina não se despe, é somente devorada, de fato, pelo lobo. Assim que ele termina a sua “refeição”, deita-se para dormir, e o som de seu ronco atrai um caçador que já procurava pelo lobo há muito tempo. O homem corta-lhe a barriga, retira as duas sobreviventes e enche-lhe o estômago de grandes pedras, que fazem-no morrer. O conto termina com uma reflexão de Chapeuzinho: “Você nunca mais na sua vida vai abandonar o caminho e entrar sozinha pela floresta, quando sua mãe tiver proibido de fazer isso”. Sem uma “moral” explícita na história, como no caso da versão francesa, a releitura dos irmãos Grimm abordam prioritariamente a importância da “obediência” da criança, deixando implícito o sentido de alertar as crianças sobre sedução e abuso.

Desde então, multiplicaram-se versões e releituras da história da menina de chapéu vermelho, em todos os cantos do mundo e em todas as épocas. Os contos de fada, além de permitir à criança estabelecer uma correspondência analógica entre o que a estória (re)vela sobre a vida e a natureza humana, possibilita também um despertar da fantasia, ajudando-a a desenvolver seu intelecto e a tornar compreensíveis suas ansiedades, emoções e dificuldades. A história de Chapeuzinho Vermelho se destaca pela sua flexibilidade, já que, apesar de ter sido escrito em condições de produção muito diversa das condições da sociedade contemporânea, mostra-se atual por (re)tratar uma situação relativa aos anseios e dificuldades enfrentadas pela criança, e configura-se como essencialmente moral, tendo por intuito maior a transmissão de valores culturalmente validados pela classe dominante. Por isso continua a ser revisitada por artistas de todas as áreas, criando versões absolutamente distintas e surpreendentes, como veremos nos resumos a seguir. A reinvenção de uma história clássica aguça a percepção das crianças de que o mundo é feito de múltiplos pontos de vista, por isso a importância de apresentarmos, como pais e educadores, novas possibilidades de olhares e leituras.

Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque

Sinopse: Chapeuzinho Amarelo conta a história de uma garotinha amarela de medo. Tinha medo de tudo, até do medo de ter medo. Era tão medrosa que já não se divertia, não brincava, não dormia, não comia. Seu maior receio era encontrar o Lobo, que era capaz de comer “duas avós, um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz e um chapéu de sobremesa”. Ao enfrentar o Lobo e passar a curtir a vida como toda criança, Chapeuzinho nos ensina uma valiosa lição sobre coragem e superação do medo. Já em sua 40º edição, este clássico da literatura infantil brasileira vem encantando gerações e gerações de leitores. O livro de Chico Buarque recebeu, em 1979, o selo de “Altamente Recomendável”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), e, em 1998, Ziraldo conquistou o Prêmio Jabuti na categoria Ilustração.

Esta obra marcou a minha infância e o mesmo tem feito com minhas filhas. Não tenho ideia de quantas vezes li e reli aqui em casa. De quantas vezes as ouvi relendo e brincando com as palavras. Aliás, a primeira dica valiosíssima: leiam em voz alta. A sonoridade das linhas/versos do Chico quase que se materializam ao lermos em voz alta. Não por acaso, Chico Buarque é atualmente um dos principais representantes da literatura nacional. Foi agraciado recentemente com a premiação mais importante de língua portuguesa, o Prêmio Camões de Literatura, pelo conjunto da obra. Já soma três Prêmios Jabuti e é autor de mais de 20 livros publicados. 

Em Chapeuzinho Amarelo, encontramos uma menina que, de tanto ter medo das coisas, já não fazia nada. De todos os medos que ela tinha, havia um que era o maior de todos. Um medo do medo do medo de encontrar um “tal lobo” que ela nem sabia ao certo se existia. Só que ela não fica refém desse perrengue não, alguns momentos de tristeza que passam rapidinho, e muitas rimas fofas depois, a menina recriada por Chico mostra que encarar os desafios de frente, com determinação e persistência, são alguns ingredientes para vencer a batalha contra os medos, sejam fictícios ou bem reais. E o autor brinca lindamente com a linguagem para acentuar que o que causa mais medo é o desconhecido e que ao nos aproximarmos do medo, olhá-lo de frente, mergulhar nas nossas sombras, tomar conhecimento plenamente do que nos aflige, somos capazes de transformá-los e nos transformar juntos. Por meio da transformação das palavras, dos significados que carregam e das ideias e conceitos que transmitem, Chapeuzinho Amarelo muda seu jeito de pensar e passa a viver de uma outra maneira, brincando com as demais crianças, correndo, subindo em árvores e fazendo uma porção de coisas que antes evitava.

Destaco aqui, também, as duas versões das ilustrações da obra: a primeira, publicada em 1979, com ilustrações de Donatella Berlendis, e a segunda, mais recente e conhecida, com ilustrações de Ziraldo. O curioso ao observarmos as duas edições é a contribuição que cada ilustrador dá ao texto (observação extensiva ao projeto gráfico e à diagramação). Pessoalmente tenho a impressão de que a edição ilustrada por Ziraldo procura a concretização da palavra por meio da imagem, exemplificando com formas e cores as construções e brincadeiras que o texto propõe com as palavras. Já a edição de Berlendis prioriza a palavra escrita e valoriza o branco das páginas, sugerindo o silêncio como um mergulho numa certa introspecção presente também no texto, que sugere,  entre outras leituras possíveis, que a reflexão leva ao amadurecimento da menina. As imagens  da edição de 1979, bem mais esparsas se comparadas à edição de Ziraldo, buscam mais sugerir do que explicitar as ideias contidas no texto. Quem ficar curioso e quiser conhecer a primeira versão, ainda conseguimos encontrar alguns exemplares em sebos, como nesse link aqui ou nesse aqui

Chapeuzinho Vermelho e o Boto Cor de Rosa, de Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho

Sinopse: Como a magia dos clássicos não tem fronteiras, nos sonhos de meninas e meninos brasileiros os personagens têm suas feições e habitam o cotidiano. Foi assim com Chapeuzinho Vermelho, menina que morava com a mãe numa aldeia de casas flutuantes, às margens do rio Negro, na Amazônia. Ao levar uma cesta com tacacá e frutas da região para a avó doente, Chapeuzinho conversa com um boto-cor-de-rosa, fica distraída com as belezas da floresta e tem uma grande surpresa quando chega no seu destino.

A história clássica recontada por Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho, dois grandes escritores da literatura infantil nacional, ganha ambientação, feições, linguagem e costumes bem brasileiros nessa obra tão importante. A história se passa na região norte do país, às margens do rio Negro. A menina ganha uma capa vermelha para se proteger da chuva. Chapeuzinho é descrita como uma menina negra, linda, alegre, esperta e generosa. Ao visitar a avó, com quem ela mantém estreitos laços afetivos, leva na cesta elementos típicos da região onde vive, alguns de origem indígena, como tacacá, tucumã, abiu e camu-camu. A fera, dessa vez, é o boto-cor-de-rosa que, em nosso folclore, leva as crianças para o fundo do rio. Aqui, após o ataque da fera, a menina é salva por um pescador. 

São tantos elementos tipicamente nacionais estruturantes dessa narrativa, que a obra, lançada em 2020, consegue se apropriar da história clássica com muita originalidade. A roupagem brasileira, além de conferir proximidade, exerce um papel fundamental de representatividade em várias frentes: desde explorar peculiaridades da região norte, pouco conhecidas no sul e sudeste (regiões economicamente dominantes do país), e, principalmente, ao representar uma “princesa clássica” com feições tipicamente brasileira: negra, alegre, feliz. A historiadora, professora, digital influencer e ativista Luana Tolentino, destaca, também, a qualidade das ilustrações e sua capacidade de gerar empatia na representatividade. “Em diversos momentos, Chapeuzinho Vermelho aparece sorrindo, rodeada pelos animais da floresta e acolhida pela mãe. Não basta que os livros infantis tenham crianças negras em suas páginas. É necessário que as imagens e as histórias estejam alinhadas com a construção de identidades positivas, como também com a afirmação de referenciais de beleza que contemplem a pluralidade étnico-racial existente no país”, afirma Luana.

Sob a capa vermelha, de Mariana Vitória

Sinopse: Vencedor de concurso da Editora Record, Sob a capa vermelha traz uma jornada sombria inspirada em Chapeuzinho Vermelho: Norina sempre temeu os Indomados, mesmo nunca tendo visto um deles. Criada em um casebre por toda sua vida, a garota os imaginava como monstros, tomados por sua besta interior e abandonados pelos Doze Deuses. Até o dia que sua mãe adotiva, Ros, conta à menina que ela é um deles e que a garota precisa continuar escondida. Viira, a Rainha imortal e filha dos Doze Deuses, tem outros planos para Norina e a envolve em uma trama para conquistar Gizamyr, reino dos homens-lobo. Com a mãe em uma masmorra, Norina não tem outra escolha a não ser embarcar para o país inimigo, com a capa vermelha da falecida princesa Mirah, esperando que o plano elaborado pela Rainha funcione. A garota então precisa atravessar um mundo que ela achou que nunca veria, onde aqueles como ela são odiados e mortos todos os dias. Entre ser tratada como escória pelos cavaleiros de Viira e interpretar uma princesa em um delicado jogo diplomático, Norina vai descobrir que abraçar a si mesma pode não ser a escolha mais fácil, mas algumas vezes é a única possível.

A releitura do clássico da literatura infantil, aqui, aparece sob o gênero ‘young adults’ – ou jovens adultos, intencionalmente construído para atrair um público jovem/adolescente. O livro é uma fantasia épica repleta de intrigas, aventuras, traição e romance. A chapeuzinho vermelho Norina é uma garota adolescente que passou toda sua vida presa dentro de casa, sempre amparada pela mãe que a criou e que nunca a deixou sair e ver as pessoas, mas principalmente ser vista, por ela ser uma Indomada, alguém que carrega um lobo dentro de si.  Após o sumiço da mãe, ela é compelida a embarcar numa incrível jornada para tentar salvá-la. Um prato cheio para os fãs de obras ao estilo da trilogia “A rainha vermelha”, que tem arrebatado legiões de fãs jovens. ‘Sob a Capa Vermelha’ se passa num reino fictício, numa época que se assemelha à nossa era medieval. No livro, as personagens trazem temas contemporâneos, como diversidade, imposição religiosa, intolerância, desigualdade social, machismo. Utilizando de recursos atuais na composição da narrativa, a jovem escritora Mariana Vitória consegue prender a atenção do leitor do início ao fim, seja pelas peculiaridades da trama fantasiosa tão bem arquiteta, seja no plot twist que faz os adolescentes delirarem esperando pelo próximo livro. 

Fita verde no cabelo (nova velha história), de João Guimarães Rosa

Sinopse: O conto Fita verde no cabelo – Nova Velha História foi originalmente publicado em 1967, no livro Ave Palavra, de João Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros. Em 1988 a Editora Nova Fronteira lançou uma edição do conto destinada ao público infantojuvenil, com ilustrações do premiado Roger Mello. Como o próprio título indica, trata-se de uma nova versão para uma velha e conhecida história – “Chapeuzinho Vermelho”. Em verdadeira reinvenção do enredo e da linguagem – marca característica desse grande autor – Fita verde no cabelo apresenta uma Chapeuzinho Vermelho menos inocente e infantil, mas igualmente “sem juízo”, o que é belamente representado nas ilustrações em preto e branco, com preciosos detalhes em verde, de Roger Mello. O lobo se faz presente pela ausência e a morte da avó é definitiva para a menina, como se essa “fosse ter juízo pela primeira vez”. Mantendo aspectos do conto original, como o famoso diálogo entre Chapeuzinho e o lobo (aqui transferido para a avó), Guimarães Rosa imprime seu estilo à tradicional narrativa, modificando espaço, tempo, densidade dos personagens e sobretudo a linguagem.

Essa indicação de releituras nacionais de Chapeuzinho Vermelho jamais poderia deixar de fora o conto de Guimarães Rosa. Guimarães não foi apenas o autor que expandiu o sertão para caber nele o homem universal. Se em seus contos e romances a paisagem sertaneja e a linguagem em mutação servem de palco e fala para os dramas humanos, ele também soube aproveitar ideias e repagina-las. É o que sugere o conto Fita verde no cabelo, sendo uma história de evocação de Chapeuzinho Vermelho, mas com uma inversão e subversão, como se, ao mesmo tempo, fosse a mesma, mas fosse outra. Mais humana, mais consciente, mais triste. Talvez muito mais “adulta” do que as clássicas e contemporâneas versões infantis. E o estilo rosiano, por certo, cria lances de linguagem que fornecem ao leitor novos jogos e surpresas. 

Nessa história, Guimarães Rosa traz o leitor para o terreno concreto da avó idosa, para quem o tempo se está findando e já está triste com a despedida. Na narrativa os braços, os lábios, os olhos aparecem na remontagem do diálogo porque, na avó, eles estão perdendo a força e a vida. É aí que acontece a grande transformação do conto. A menina, que inventou uma fita verde para enfeitar o cabelo como que para marcar certa inocência, diante da avó que morre, não pode mais ignorar a existência das tristezas do mundo, nem se isolar na própria bolha de alegrias inocentes. O mundo se impõe, e mesmo que ela ainda faça uma última tentativa, dizendo ter medo do “Lobo”, isto é, do desconhecido e daquilo que aterroriza, o lobo não mais existe (pois os lenhadores o mataram). Mas há outras coisas, como o tempo, que, simbolicamente, também devora a todos. E isso se revela à menina, que não pode mais trancar-se em seu ambiente infantil. Por certo que Guimarães Rosa não pressupunha, com esse conto, destruir infâncias. Antes, como função central da literatura, ele parece querer acrescentar outros sentidos para ampliar a visão de mundo dos seus leitores. Não se pode viver restrito à inocência infantil, pois o mundo tem lados cruéis, e se deve enfrentá-los. Mas também se pode celebrar a infância que persiste em todos. O que se precisa é equilibrar. 

Quem quiser ler o conto – não deixe de fazê-lo em voz alta -, está disponível aqui

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