Entender e desconstruir esse processo é a única maneira de contribuir para a construção da equidade de gêneros que promova uma sociedade mais igualitária e respeitosa no futuro. Conheça a experiência da mommy Cláudia Moreira e o que pensa a psicóloga, e também mommy, Bel Ornelas, sobre esse tema.

Por Carol Barreto

“A mulher é um ser de cabelos compridos e ideias curtas”.

“Todo feminismo termina sendo um machismo de saia”. 

“Além de casar, o que a mulher mais gosta é de ser enganada de vez em quando”.

 É provável que você já tenha ouvido frases como essas, ou no mesmo teor, ditas por homens da nossa sociedade. Poderíamos argumentar que são homens ignorantes, sem conhecimento sociocultural, certo? Infelizmente não. A primeira frase é atribuída a Arthur Schopenhauer, filósofo que mais contribuiu para a composição do conceito, ético e ateu, da metafísica alemã. 

Então poderíamos pensar que são frases proferidas por homens afastados da espiritualidade, certo? Errado novamente. Afinal, o autor da segunda frase é ninguém menos do que o Papa Francisco, que posteriormente buscou se retratar. 

Ah! Então a melhor justificativa é: são frases ditas apenas por homens, ponto. Correto? Também não. A última frase é de autoria da escritora Jane Austen. 

Atitudes e discursos machistas são frutos da construção da identidade feminina e masculina ao longo da história da humanidade. Denominamos como machismo estrutural justamente a construção e a organização dos elementos que compõem o corpo social, dando sustentação à dominação patriarcal. 

Ainda nos dias atuais, mesmo com estudos avançados e amplamente compartilhados sobre o tema, muitos pais e mães seguem reforçando comportamentos machistas na criação de seus filhos, especialmente por repetirem o modo como foram educados. Estimulam hábitos e articulam frases e ideias que vão naturalizando nas crianças a reprodução desse padrão. 

“Isso é coisa de menina”, “meu filho vai dar trabalho, vai ser pegador”, “menina tem que ajudar a mãe a cuidar da casa” e muitas outras frases e comportamentos que já estão arraigados à nossa cultura são parte do cotidiano de muitas crianças, que vão absorvendo e repetindo tais condutas. 

Os impactos e legados do machismo para a sociedade brasileira são evidentes quando buscamos os “Indicadores sociais das mulheres no Brasil”, desenvolvidos pelo IBGE, que analisa as condições de vida das mulheres no país. Segundo o último levantamento, publicado em 2021, as mulheres dedicaram aos cuidados de pessoas ou trabalhos domésticos quase o dobro de tempo que os homens.

 Por outro lado, receberam salários, em média, de apenas 77,7% do montante auferido pelos homens e a desigualdade alcança proporções maiores nas funções e nos cargos que garantem os maiores ganhos. 

Outro dado relevante da pesquisa diz respeito à sub-representação. Na política, a evolução da participação feminina é ínfima. Embora as mulheres sejam maioria na população brasileira, e mais escolarizadas, somente 16% dos vereadores eleitos no país em 2020 foram mulheres. 

Ou seja: continuamos cuidando de casa e filhos, recebendo menos, estudando mais e sem representatividade política. Isso para não trazer à tona os dados da violência contra as mulheres que são ainda mais opressores e deprimentes. Pensar numa educação dos filhos que, na prática, combata esse tipo de comportamento é o único caminho possível para construirmos a equidade de gêneros.

Por onde começar a transformar essa realidade?

 Embora protagonistas nos debates sobre equidade de gênero e usufrutuárias dos avanços proporcionados pelos movimentos feministas, grande parte das mulheres ainda vive sob uma cortina de fumaça, equilibrando tantos pratos no dia a dia, que a conscientização sobre o problema e consequências que a perpetuação de certos comportamentos pode trazer para si mesmas e para as outras mulheres torna-se alvo distante, o que pode levá-las a reforçar estereótipos entre os filhos. 

Daí a importância da partilha e da escuta de experiências de outras mulheres que auxilie na desconstrução da repetição de modelos machistas na criação dos filhos. Entender como não ser uma mãe que reproduza o machismo é tão importante quanto combatê-lo.

 A mommy Cláudia Moreira, de 41 anos, é arquiteta e mãe de 3 filhos, Leticia (18 anos), Rafaela (06) e Guilherme (04). Os dois filhos mais novos são frutos de seu atual relacionamento de quase uma década. Um relacionamento saudável e construído diariamente com muita parceria, paciência e amor. Mas não foi sempre assim. 

A mommy Claudia Moreira, arquiteta, com os 3 filhos, Leticia, Rafaela e Guilherme, e seu companheiro, Régis. | Imagem: Arquivo pessoal.

Aos 22 anos, Cláudia se envolveu com um homem 20 anos mais velho e engravidaram após poucos meses de namoro. Ela ainda cursava faculdade quando se casaram. Vivendo juntos ela começou a perceber, em pouco tempo, certas atitudes machistas e misóginas por parte dele: “Presenciava tudo de maneira pueril, com imparcialidade por acreditar que era normal”, afirma Cláudia. 

Com o tempo vieram as agressões e ameaças: “Durante toda a relação suportei agressões verbais, abuso sexual marital, ameaças diversas e constantes, inclusive de morte”. Após 5 anos de sofrimento ela conseguiu reunir forças para sair de casa. “Emagreci quase 20 kg, deprimida, frágil e totalmente indefesa. Vivi ainda por alguns anos sob ameaças constantes, perseguições, injúrias, insultos, humilhações, alienação parental até que ele foi acometido por uma doença que o deixou inválido e o levou a morte alguns anos depois”, conta a arquiteta. 

Qual o caminho para se reerguer de uma experiência dessas? O primeiro passo é entender que se necessita de ajuda: “consegui me reerguer com auxílio psiquiátrico, medicação e muita coragem”, diz Cláudia. Essa reconstrução pessoal leva tempo, exige paciência, força e apoio. Mas ela conseguiu e se permitiu transformar a dor em aprendizado e determinação para modificar a realidade ao seu redor.

 “A infeliz experiência que tive em um relacionamento abusivo possibilitou-me ter plena consciência da sociedade patriarcal em que vivemos e seus malefícios e tem influência direta na minha relação com o outro e na educação dos meus filhos, hoje”, conta. A conversa aberta sobre o machismo e suas consequências é apontada por Cláudia como sendo fundamental no seio familiar. “Sempre com cautela e respeitando o amadurecimento das crianças, devido ao peso que esse comportamento carrega”.

 Ela conta que comportamentos que reforçam o machismo estão tão entranhados em nossa sociedade, “que desconstruir esse processo dentro de um lar exige um trabalho árduo, treino, paciência e sabedoria”. E dá alguns exemplos de como leva isso para o dia a dia: “As crianças e adolescentes são guiadas basicamente por exemplos, então trago para o cotidiano da família a igualdade de gênero nos simples detalhes. Divisão de tarefas, os brinquedos são apresentados sem distinção de gênero, os sentimentos podem e devem ser expostos, choro, raiva, independente se é menina ou menino. Nos policiamos a todo momento para que expressões do cotidiano patriarcal como, ‘vira homem’, ‘você é menina, não pode nada’, não sejam utilizados”.

 O caminho é longo e exige policiamento constante. “Por aqui, o combate ao patriarcado é constante, mas sempre encontro vários obstáculos na própria família, no meu companheiro, na vizinhança, escola e às vezes em mim mesma. A dominância masculina é tão enraizada que em vários momentos surpreendo-me exercendo uma atitude machista. Acontece na criação dos meus filhos, no meu relacionamento, com meus amigos”. Cláudia reforça: “é necessário um trabalho dia a dia, começando por nós mesmos e levando a palavra e exemplos com sabedoria, cautela e paciência para os demais”.

 Como lidar com as diferenças na criação de meninos e meninas

  O feminismo, para muito além dos reducionismos com que é abordado na era digital, pode ser qualificado como um movimento contra o sexismo e a desigualdade entre gêneros, que abarca e defende as reivindicações das mulheres por seus direitos. Outro ponto sempre relevante para o movimento é o combate a ações que não só colocam as mulheres em posições de inferioridade, mas também atribuem expectativas de como os homens devem se portar para não evidenciarem suas fraquezas e sentimentos, como se tal comportamento fosse ameaçador a sua “masculinidade”.

 O conjunto de expectativas imposto, historicamente, a respeito de homens e mulheres influencia enfaticamente a dinâmica familiar e a postura dos pais. Quando falamos em combater o machismo, pensamos logo em empoderar as mulheres. Mas qual é a importância de combatê-lo também a partir dos meninos?

 De acordo a psicóloga, feminista e mommy, Bel Ornelas, sob o domínio do machismo ninguém sai ileso. “Se por um lado é preciso abrir os olhos das meninas e mostrar que elas podem ser quem elas quiserem, que devem lutar pelas mesmas oportunidades e direitos, é preciso que os homens também aprendam a enxergar o mundo sob essa perspectiva. Se elas precisam se apropriar dos espaços públicos, eles por sua vez precisam se apropriar do espaço doméstico. E ambos precisam aprender novas formas de se expressar no mundo que sejam desvinculadas dos ciclos de opressão”.

 Para Bel, se o machismo é opressor para as mulheres, para os homens ele também é limitador. “Assim como as meninas, desde pequenos, os meninos são enquadrados em caixinhas muito limitadoras. E vão buscar se encaixar nesses rótulos, no que é esperado deles enquanto meninos. Não podem ser muito sensíveis, amorosos, não vão aprender a lidar com a raiva usando muitas vezes a violência como forma de resolver os conflitos e vão se sentir sempre pressionados a serem fortes e a competirem entre si”. 

A mommy Bel Ornelas, psicóloga, feminista, malabarista de pratinhos cotidianos e mãe da Clarinha. | Imagem: Arquivo pessoal.

A psicóloga destaca, ainda, que a reprodução dos modelos de conduta marcadas pelo machismo inibe potencialidades individuais amplas. “Uma criança, menino ou menina, criada sob perspectivas machistas não poderão desenvolver plenamente suas personalidades como deveriam e gostariam em prol de se encaixarem no que se espera deles socialmente. É urgente que esses meninos descubram novas masculinidades que permitam que eles possam assumir suas individualidades e que proporcione um mundo mais justo”. 

Em sua rotina doméstica familiar, Claúdia Moreira coloca em prática esses posicionamentos. Ao falar sobre a educação de seu filho, Guilherme, a arquiteta pondera: “O machismo pode ser tão opressor para homem como é para a mulher. Sendo assim, respeitamos seus desejos e sentimentos independente do órgão sexual que carrega. Ele tem carrinhos, adora futebol e super heróis, mas aqui menino também brinca de boneca e comidinha. Experimenta acessórios femininos e inclusive vestido de princesa. Sempre respeitando suas necessidades, nada é imposto ou provocado. Seguimos com naturalidade. Isso pode ser um problema para a maioria das famílias, infelizmente. Acreditamos que permitir que uma criança brinque, expresse e experimente abertamente só vai gerar um adulto feliz, bem resolvido e empático”.

Como transformar as práticas cotidianas

 Essa mudança de olhar e comportamento por parte dos pais/cuidadores das crianças, segundo Bel Ornelas, é fundamental para a formação de uma sociedade com cidadãos mais conscientes da necessidade da equidade de gêneros. Segundo a psicóloga, “o principal papel das mães e pais é abandonarem os rótulos e apresentarem uma vida com mais repertório para essas crianças. Seu filho tem bonecas para que ele possa brincar de casinha? Sua filha tem carrinhos? Ambos brincam/usam coisas rosas e azuis? Seu filho é acolhido quando chora? Frases como “seja homem”, “você é o homem da casa”, “isso é coisa de menina” são ditas na sua casa? À primeira vista esses enfoques podem parecer inofensivos, mas é através de sutilezas como essas que as crianças começam a interiorizar a ideia de que não podemos ter as mesmas oportunidades, e que nossos comportamentos devem ser diferentes”.

 Bel também destaca a importância do exemplo nessa relação entre pais, familiares e as crianças: “Como é a percepção dessa criança em relação ao comportamento dos homens e mulheres com os quais convive? No nosso dia a dia estamos reforçando esses estereótipos com as nossas atitudes? A revisão sempre é importante”.

 E se a criança tem no seu círculo de convívio exemplos que corroboram com o machismo estrutural? Por exemplo, ela sempre vê a vovó cuidando das tarefas domésticas e o vovô no sofá vendo televisão. Uma mãe que cuida exclusivamente dos filhos enquanto o pai trabalha fora o dia inteiro e não participa de nenhuma demanda doméstica. Não é possível mudar essa realidade, mas como lidar com isso?

 “Fingir que nada está acontecendo não funciona porque a criança está, mesmo sem dizer nada, captando a mensagem. Nesses casos, converse com a criança, debata, pontue, gere reflexão. Mantenha o assunto vivo em casa para que elas possam ter um espaço seguro para tirarem dúvidas, criarem um senso crítico e principalmente, conseguirem se reconhecer como são para além dos estereótipos dados”, finaliza Bel.

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios estão marcados *

Postar Comentário